A
claridade que começava a invadir o quarto de Charlie avisava-o que estava
começando mais um dia. Ele virou para o lado na tentativa de se esquivar
daquela luz que tentava prová-lo que há um belo e promissor dia lá fora
esperando por ele. Depois de perceber que não havia maneira de escapar daquele convite à um novo dia, sentou-se à cama
de olhos ainda fechados. Estava tentando se lembrar do sonho que tivera esta
noite, mas não obteve sucesso; a única coisa da qual sabia é de que fora um
sonho bom e magnífico, pois se lembrou de ter acordado no meio da noite com
as mãos suando, sentindo-se eufórico e com certa adrenalina.
Charlie se levantou, olhou
pela janela na esperança de ver nem que fosse uma única nuvem de chuva, por mais longe que estivesse – ele gosta
da chuva tanto quanto uma
criança gosta do colo de sua mãe – e ficou desapontado ao ver um céu limpo e um
sol radiante como se quisesse dizer:“Vamos, cara! Veja que dia perfeito para
você ir ao parque, ir ao clube ou até mesmo ficar na varanda de sua casa lendo
um bom livro enquanto toma uma limonada gelada!”. O problema é
que era uma segunda-feira, às 7h00 da manhã – neste horário, Charlie já estava
atrasado para o seu trabalho – e ele tinha duas horas, divididas em dois
ônibus e um metrô, para chegar até o seu trabalho. Ele tomou um copo de suco
(suco que já estava em cima da mesa há mais de uma semana) e pegou um pão para
comer no caminho. Esse era o seu ritual matinal; acordar, lamentar-se na
cama, levantar, olhar pela janela, se decepcionar, e correr para o trabalho.
Durante o caminho para o
trabalho, Charlie geralmente tinha muito tempo para pensar – duas horas e
quinze, aproximadamente -, mas ele raramente o fazia. Estava
cansado, tanto fisicamente quanto mentalmente (Depois de sete anos em um trabalho
que ele até agora não sabe o porquê está nele, e de noites em claro tentando
entender o que ele fizera da sua vida para que ela se tornasse esta coisa
rotineira e monótona, Charlie cansou de se questionar e pensar na sua vida e em como melhorá-la e simplesmente resolveu fingir que sua vida era satisfatória).
Mas este dia estava sendo diferente. O sonho que tivera estava o
atormentando. Ele se lembrava da sensação que teve durante o sonho e durante alguns
instantes ao despertar dele. Era uma sensação única! Charlie nunca tinha se
sentido daquela forma durante toda a sua vida – não que ele se lembrasse pelo
menos -. Por conta disto, aquele sonho se tornou importante e de certa forma
uma escapatória da realidade. Ele queria se sentir daquela forma novamente,
queria se sentir eufórico, queria sentir adrenalina, ele queria sentir-se vivo!
No final do dia, depois de
fracassar na sua missão de descobrir o seu sonho; Charlie chegou em casa,
conferiu o que tinha para comer e soube que só tinha um pedaço de uma pizza que estava
completando seu 3º dia em cima daquela minúscula mesa que ele deixa no canto da
sala (a cozinha é bem pequena. Só um fogão e a geladeira ocupam todo o espaço dela), e uns dois pacotes de macarrão instantâneo.
Charlie então colocou água para ferver e foi para o banho. Ele pensou em fazer
a barba, mas achou melhor deixar para amanhã – “Deixar para amanhã” é o que
Charlie mais fez sua vida toda -. Lembrou de ter ouvido falar uma
vez, em algum canal de tevê, que grande parte das pessoas pensam, refletem e
tomam decisões importantes durante o banho. "Deve ser por isso que eu não levo
nem dois minutos no banho" pensou Charlie enquanto dava uma risada pela
primeira vez no dia. Ao terminar o banho, colocou o macarrão
instantâneo na água que ele tinha deixado fervendo e esperou por alguns minutos
a sua refeição ficar pronta. Já faz um bom tempo que ele não come uma
refeição saudável (ou qualquer outra refeição que não seja macarrão instantâneo
ou pizza fria), e não é porque ele não sabe cozinhar, muito pelo contrário, ele
sabe cozinhar e muito bem! O problema é que depois de um tempo,
cozinhar para você apenas, começa a ficar sem sentido e cada dia mais
solitário. Depois de pronto o macarrão, Charlie pegou seu prato, sentou no seu
sofá e ligou a tevê. Estava passando um telejornal. Ele se indignava com as
notícias, ficava revoltado com a corrupção dos seus políticos, se desesperava
com o resultado do último jogo do seu time, lamentava as tragédias que
aconteciam e, no final da noite ele xingava a vilã da novela das oito.
As
notícias pareciam serem as mesmas todos os dias. A reação de Charlie era a
mesma todos os dias...
Charlie acabou dormindo no
sofá mesmo, e pela manhã, acordou com o os ruídos e um falatório dos seus
vizinhos barulhentos que estavam saindo para trabalhar; “Eles já estão saindo
para trabalhar?!” pensou ele, levantando e trocando de roupa enquanto pegava
um pão para comer no caminho. Ele estava mais atrasado do que de costume, e só ele sabe o quanto ele odeia sair da rotina (ou quanto ele acha que odeia).
Nesta manhã ele não teve tempo para pensar no seu estranho despertar da
madrugada, onde suas mãos novamente ficaram frias e ele acordara sentindo-se
eufórico! Só foi pensar sobre isso no seu horário de almoço, enquanto estava
pedindo um salgado e um copo de suco.
Mais uma noite à base de
macarrão instantâneo, tevê como um entretenimento instantâneo, garantindo uma
satisfação instantânea – momentânea, vazia e barata – se passou, junto com mais
um misterioso sonho do qual Charlie não consegue se lembrar. E assim foram os
dias durante aquela semana. Charlie estava nervoso, irritado e angustiado,
tudo por causa do sonho que o perseguiu e o torturou com a dúvida
a semana toda também.
Chegou sexta-feira e a sua rotina se repetiu. Mas sábado de manhã Charlie acordou
diferente. Ele dormira na sala
novamente, porque lá entra pouca luz e ele poderia dormir até mais tarde.
Mas isto não importava mais, pois Charlie não estava dormindo bem. Depois do
primeiro dia do intrigante sonho, não conseguia mais dormir em sossego e as coisas
só foram piorando a cada dia que passava! Nos últimos dois dias, Charlie não
tinha conseguido dormir. Parecia uma coruja alerta e curiosa, atenta a qualquer
evento, por menor que fosse, que acontecesse ao seu redor. Aquele sonho estava
o torturando, estava o perturbando. Ele queria descobrir que sonho era aquele e por
que o fazia ficar daquela maneira; eufórico, animado, entusiasmado, e o
principal: vivo!
– MAS QUE DIABOS! – gritou Charlie. – Por que eu fui ter esse sonho? Por quê?!
Charlie se encostou à
parede e foi escorregando lentamente até ficar sentado no chão frio, no canto
da sala.
– Durante toda a minha
vida patética... – reclamou, olhando para o alto como se esperasse uma
resposta de alguém no final da sua lamentação. –... Foram raras as vezes que me
senti bem comigo mesmo! Não consigo me lembrar de nenhuma data em que eu tenha
pensado “Oh, como esta vida é gratificante!”.
Charlie abaixou sua
cabeça, encostando ela entre seus joelhos, parecendo uma criança triste que
está fazendo algo contra seu gosto e não entende o porquê de ela estar em
determinado lugar. Na verdade, é exatamente assim que se sente, “Por
quê?”, “Qual o meu objetivo aqui?”, “O que estou fazendo aqui?”, “O que eu
tenho que fazer da minha vida?”. Essas dúvidas sempre afligiram Charlie, mas
ele nunca foi atrás de respostas. Ele sempre achou melhor se acomodar e ter uma
vida comum. Ele terminou os estudos no colégio e procurou um emprego comum e trabalhou neste emprego sem nunca se questionar o que fazia e para quem fazia.
Ele era alguém comum. Mas era alguém comum com dúvidas e questionamentos, e
isso não é bom. Alguns estudiosos diriam que essa última fase de Charlie
indicava um distúrbio psicológico, onde por causa dos seus questionamentos
intercalados com o seu medo e seu comodismo, fez com que ele criasse esse sonho,
para poder se sentir vivo de alguma forma.
– Eu só queria sentir
aquela sensação durante os meus dias! É muito difícil isto?! – bradou,
como se estivesse culpando alguém naquela sala. Seu semblante estava diferente,
algo dentro dele mudou. Charlie já não era mais o mesmo! Toda aquela pressão e
aquela briga interna entre o Charlie cômodo e o Charlie questionador, acabou
perturbando a mente dele, transformando-o em um pobre homem sem controle sobre
si...
Passaram-se
alguns dias sem que ninguém o visse no trabalho, ônibus ou na padaria
(único lugar que ele ia frequentemente, para comprar o seu pão que
era sagrado em sua rotina). Pensaram em ligar para o apartamento dele, mas logo
descobriram que isso não seria possível, pois Charlie não tinha telefone e
celular, afinal, ele não mantinha contato com parentes e não tinha amigos, logo
não precisaria de um telefone. Resolveram então ir até o apartamento dele, onde
então, encontraram um bilhete com o seguinte texto:
“Minha
vida inteira foi um grande nada! Isso mesmo. Eu nunca fiz nada que mudasse a
vida de alguém (muito menos a minha). Eu nunca tive objetivos e nunca fui
ambicioso. Foi então que, em uma noite de sono eu passei a ter um sonho, sonho o qual
ainda continua em mistério para mim. A única coisa que posso afirmar é que esse
sonho me fazia sentir bem! Me deixava contente, alegre, eufórico e vivo! Mesmo
que eu me lembrasse dessas sensações por alguns instantes, esses instantes eram
melhor do que qualquer coisa que eu já presenciei e senti na minha vida toda! A
dúvida sobre o que esse sonho se trata está me torturando, e sinto que devo ir
atrás dele. Devo fazer algo para que eu possa vive-lo definitivamente e sinta
para sempre essas sensações que me fazem tão bem.
E foi por isto que fiz o que fiz.”
Este
bilhete estava no chão, onde mais ou menos a um metro acima dele se encontrava
o corpo de Charlie, pendurado com uma corda em volta do pescoço. Seu rosto não
parecia ter sentido dor ou preocupação, pelo contrário, dava para perceber um
leve sorriso, como se quisesse indicar que todas as dúvidas e questões que tinha, foram embora e agora ele teria descanso.
No
telejornal de hoje à noite eles vão citar a morte de Charlie. A morte de mais
um Charlie, onde vários outros Charlies vão assistir de suas casas, e mais
tarde vão estar xingando a vilã da novela das oito.